2018 – Digital… de dentro para fora (RH Magazine)

Quando fui desafiado a escrever este artigo abracei o repto com enorme entusiasmo, pois este é um tema que vivo todos os dias na pela, e que me faz pensar, refletir e estudar numa base permanente. E a base de toda esta inquietação é esta questão fundamental: porque é que a migração das organizações para o novo paradigma digital que vivemos é tão difícil e por vezes penoso? A resposta que tenho vindo a encontrar sistematicamente é que a tecnologia só por si não muda nadaSão as pessoas que provocam a mudança. Mais do que isso, as organizações hoje vivem uma situação paradoxal: esperam migrar para um workplacedigital e para produtos e serviços digitais com uma força de trabalho que não sabe lidar com essa mudança.

Criar o digital de dentro para fora implica, pois, uma transformação cultural. Um recente estudo da Capgemini revela que a maior dificuldade na transformação digital são as questões culturais (Capgemini, 2017). Mudar uma cultura implica alterar crenças, formas de trabalhar, de olhar para os problemas, de colaborar, de ensinar, aprender e de comunicar em geral. A maioria das empresas muda de tecnologias, infraestruturas e até processos. Mas muitas vezes negligencia-se a mudança cultural. E aquilo que habitualmente corria bem passa subitamente a correr mal. Porque o contexto de trabalho e a lógica dos produtos e serviços mudou para um paradigma digital, mas as pessoas continuam na mesma. Como diz Clare Barclay, COO da Microsoft UK, “Creating a culture in which technology blends with human potential is where the magic happens” (Microsoft, 2017).

Para mudar hábitos é preciso criar um sentido de utilidade percebida: as pessoas têm de perceber as vantagens evidentes do uso da tecnologia. Sempre que isso acontece, as curvas de aprendizagem e as taxas de adesão disparam. A Apple sabe isso há décadas, e por isso investe tanto na user experience. Automatizar tarefas repetitivas é percebido como de enorme valor acrescentado numa era em que o tempo é percebido como tão escasso. Usar data analytics para tomar melhores decisões está no top of mind das necessidades. Usar chatbots para as tarefas repetitivas de primeiro contacto num portal de recrutamento é um fator diferenciador numa era em que uma resposta dada em segundos faz a diferença nas escolhas e perceções do candidato. Potenciar o trabalho criativo com tecnologia que permita associar ideias, fontes e imagens passa a ser um acelerador do processo de cocriação, especialmente se aliado a formas de ligar as pessoas, potenciando a cocriação sem limites ou barreiras físicas. 

O segredo para criar uma cultura digital é colocar o digital ao serviço de melhores interações humanas, que permitam criar mais valor em menos tempo. Sabemos que tecnologias usar para conseguir isso? Há que mapeá-las, abrindo o olhar ao exterior e experimentando. Temos de criar uma cultura de beta-testers. E isto não é acabar com o emprego. É reinventá-lo. Curiosamente, apesar do medo que a mudança tende a provocar, no estudo feito pela Microsoft no UK, a maioria dos empregados vêm a aprendizagem de novas tecnologias como uma oportunidade e não como uma ameaça (42%). Mas o medo não deixa de ser um obstáculo. Mas está onde menos se espera: na gestão e na liderança. A maior barreira à transformação digital está na aversão ao risco da gestão e na lentidão dos processos de tomada de decisão. As empresas não são mais ágeis por causa da mentalidade dos seus decisores, que ainda têm cérebros analógicos (não esqueçamos que a geração X é a que está no poder atualmente).

Segundo um estudo da Fujitsu, a principal razão para não extrair mais valor do digital é a falta de conhecimento/treino (50%), logo seguido da falta de noção das tecnologias que existem à disposição para usar (42%) (Fujitsu, 2015). Logo, uma cultura de early adopters e beta-testers é primordial (experimentar, aprender, partilhar e depois implementar). Com a disseminação de APIs de todo o tipo, o futuro passa por uma constelação de soluções que comunicam umas com as outras, pelo que o tipo de tecnologia que usamos é cada vez mais secundário: o importante é usar! As tendências apontam para que a aprendizagem do digital vai resultar muito mais de uma dinâmica de iniciativa individual (que coincide com a postura dos centennials, que tendem a buscar as aprendizagens na Net em função dos seus interesses) e com a proatividade dos próprios providers da tecnologia em torná-la fácil e intuitiva e em disponibilizar objetos de aprendizagem que facilitem a sua apropriação pelos utilizadores (por exemplo, eu uso muitas dezenas de apps e programas, e experimento centenas por ano e a minha curva de aprendizagem e escolha é, em média, inferior a 72 horas… e esta é a janela de tempo para conquistar os utilizadores).

Qual o papel das organizações aqui? Formar nas tecnologias, promover eventos de partilha e cocriação, criar rituais de gestão que exijam o uso de tecnologia e não castrar a cultura de beta-tester. Uma cultura de beta-tester cria-se experimentando em âmbitos pequenos, restritos e controlados, para gerir o risco operacional. Isto implica criar uma lógica de equipas de trabalho mais granular, muito diferente da lógica departamentalizada e burocrática que as empresas ainda hoje tendem a manter. Muito mais a lógica da Spotify com as suas brigadas de trabalho. 

Como se faz este caminho para a transformação? 1) Dando o exemplo, contagiando os outros. A liderança tem de ser a primeira a mudar a sua postura e a abraçar com entusiasmo o digital, assumindo as suas vulnerabilidades (a maioria ainda tem um cérebro analógico) e tendo a humildade e atrevimento de saber pedir ajuda a surfar nas apps e devices; 2) Não ter medo de lançar waves sucessivas de inovação, numa lógica de beta-testers. Uma tecnologia não tem de estar estabilizada para começarmos a usar outras (elas nunca vão estar totalmente estabilizadas, mas sim em permanente evolução); 3) Criar uma cultura de feedback permanente, de cocriação e de transparência, que permita o fluir ágil da inovação e da experimentação. A era em que a informação era poder já era: o poder está na cocriação e na colaboração (PWC, 2013). E esqueçam a imitação: ela vai sempre acontecer, por muito que fortifiquem o vosso castelo. Ser o primeiro a ser imitado é o novo cool! 4) assumir a mudança para o digital como parte da vida normal. Hoje já não faz sentido falar em mudança, mas sim em evolução permanente, e a mesma está embebida no nosso quotidiano. Estou, por exemplo, a escrever este artigo recorrendo à consulta online de alguns dos melhores estudos internacionais sobre o tema, a um software de criatividade que combina ideias e fontes diferentes num corkboard, um software de escrita profissional que me isola de distrações e uns fones que aprendi a usar com os millennials que trabalham comigo, e que sabem quão poderosa pode ser a música para nos concentrar, focar e dar ritmo. No fim do dia, ainda é preciso o meu cérebro para escrever o artigo. Pois é, os humanos continuam por cá, mas aprendendo a usar o digital em favor de um futuro mais radioso. A nossa paixão é ajudar pessoas e organizações a fazer este caminho. Are you ready?

Ricardo Fortes da Costa

Managing Partner da SDO Consulting Portugal 

Outubro de 2018

Bibliografia

Capgemini. (2017). The Digital Culture Challenge: Closing the Employee-Leadership Gap. USA: Capgemini.

Fujitsu. (2015). Digital Inside Out – Creating a digital-first Britain. UK: Fujitsu.

Microsoft. (2017). Creating a culture of digital transformation. UK: Microsoft UK.

PWC. (2013). Building a digital culture. USA: PWC.