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A tirania da positividade


Vi recentemente uma TED Talk que me deu muito que pensar. É uma palestra tocante de 16 minutos de uma psicóloga, a Susan David, com o título “The gift and power of emotional courage“, e que nos alerta para uma armadilha dos tempos modernos: a tirania da positividade.

E no que consiste a tirania da positividade? Numa leitura superficial e pouco esclarecida sobre a psicologia positiva e sobre todos os estudos sobre a felicidade, como por exemplo os da Barbara Fredrikson.

Quando lemos apenas os “headlines” sobre estes estudos, corremos o risco de transformar a positividade ou a felicidade num fim em si mesmo, numa espécie de dogma do que é certo ou politicamente correcto.

E é fácil cair nesse dogma quando vivemos numa sociedade que cultiva o hedonismo, e onde qualquer “YouTuber” ou “influencer” da moda, com idade para ser meu filho e zero anos de experiência de trabalho ou de responsabilidades parentais, cultiva a ideia de que o sucesso é ganhar muito dinheiro, de preferência sem trabalhar e tendo sempre um “pensamento positivo” perante tudo o que nos acontece.

Ora bem, a vida não é assim. Para se ter sucesso é preciso ter objectivos, acreditar que somos capazes, ter força de vontade e trabalhar obstinadamente e inteligentemente para atingirmos o que queremos. E ao longo da nossa jornada vão surgir muitas dificuldades. E perante essas dificuldades e adversidades vamos-nos muitas vezes sentir mal (ou mesmo muito mal). E isso é normal. É humano. E não tem nada de mal.

Vivemos hoje num mundo em que assumir que temos emoções negativas é logo sinal de alerta. É logo razão para nos quererem ajudar. Como se tivéssemos uma deficiência ou uma insuficiência cognitiva. Como se sentir frustração, raiva, medo ou vergonha não fizesse parte de um leque básico de emoções humanas que nos ajudam a evoluir como indivíduos.

Negar que as sentimos e não dar espaço para processarmos essas emoções é impedir boa parte do nosso processo de aprendizagem e do nosso processo de crescimento enquanto humanos. Como poderemos ser resilientes se não aprendermos a lidar com a frustração? Sim, porque ser resiliente não é eliminar as adversidades ou os obstáculos, mas sim sermos capazes de lidar com eles. Ser resiliente é sermos capazes de nos erguermos depois de os acontecimentos nos deitarem ao chão. Ser resiliente é assumir que falhámos mas não aceitar que fracassámos. Pois só fracassa quem desiste de aprender com os erros e desiste de tentar ir mais além.

Como eu costumo dizer, nós não temos o poder de decidir o que nos acontece, mas temos o super-poder de decidir o que fazer com aquilo que nos acontece. E por isso eu não acredito no fracasso. Porque mesmo da situação mais negativa nós podemos extrair uma aprendizagem, um output positivo, e fazer algo com isso.

Isto é o mesmo que dizer que alguém que é corajoso é alguém que não tem medo. Nada mais falso. Alguém corajoso é alguém que consegue ir em frente apesar dos seus medos. O mesmo se aplica ao conceito de felicidade. Como a Barbara Fredrikson tão bem explica, a felicidade é um estádio que se alcança quando o nosso fluxo de emoções ao longo do dia consegue alcançar uma proporção de emoções positivas de 3 para 1 face às emoções negativas. O que significa isto? Que ser feliz não implica eliminar as emoções negativas. Elas existirão sempre, mas ser feliz significa não deixar que as emoções negativas nos dominem, e dar espaço para, reconhecendo-as, usá-las para aprendermos a ser melhores e, por consequência, mais felizes e equilibrados.

Em suma, vivemos num mundo em que parece sinal de fraqueza ou de fragilidade assumir que estamos a viver emoções negativas. Como se assumir isso fosse politicamente incorreto, porque o que está certo é termos sempre “pensamentos positivos”. Como a Susan David tão bem exemplifica na sua TED Talk, isto é tão ridículo como dizermos a uma pessoa que acaba de saber que tem cancro que deve ter “pensamentos positivos”. Só quem não lidou com esta situação pode achar que isto ajuda de alguma forma… Num momento destes as pessoas têm, naturalmente, pensamentos e emoções negativas. É cognitivamente saudável que assim seja. O que depois fazemos com isto é que faz toda a diferença.

Na verdade, precisamos de reconhecer e de experimentar as emoções negativas para podermos, a partir delas e com elas, construir uma atitude positiva. E o que é uma atitude positiva? Uma forma de pensar que nos permite aprender com as emoções negativas e que nos impele para a ação e para o progresso.

Vamos por partes. A nossa forma de lidar com emoções negativas varia em função de dois fatores:

  1. aceitação e reconhecimento – eu consigo aceitar que estou a viver emoções negativas e consigo reconhecê-las ou não sou capaz de assumir que me estou a “dar ao luxo” de viver emoções negativas?
  2. reflexão e aprendizagem – eu limito-me a viver a situação sem refletir sobre a mesma ou uso o meu pensamento consciente e o meu sentido crítico para pensar nas causas das emoções e retirar daí aprendizagens que me permitam agir melhor e ter uma conduta mais virtuosa e mais potenciadora de emoções positivas?

Quando cruzamos estes dois fatores encontramos 4 posicionamentos possíveis face às emoções negativas:

  1. negação – as pessoas não reconhecem que estão a viver emoções negativas e não refletem sobre as emoções e as situações que as originam. É o estado de pessoas que se irritam muito facilmente e que perdem o controlo das suas emoções, mas que assumem que “são assim”. Podem facilmente descambar nos estados 2 e 3;
  2. farsa da falsa felicidade – as pessoas não reconhecem que estão a viver emoções negativas mas refletem sobre as situações que vivem e arranjam narrativas auto-explicativas para o seu desconforto. É o caso de um executivo que dedica todo o seu tempo ao trabalho e descura a família. O ambiente familiar ressente-se e o casamento gera emoções negativas. O executivo assume que esse é o preço a pagar por uma carreira de sucesso e compensa o “vazio emocional” da vida familiar com mais dedicação ao trabalho. Quando confrontado com a hipótese de abrandar e dedicar mais tempo à família, argumenta que tem de manter o nível de vida que a sua atual remuneração garante à família, prendendo-se a si mesmo numas “algemas de ouro”;
  3. depressão – as pessoas reconhecem que estão a viver emoções negativas mas não refletem sobre as emoções e as situações que as originam. Tendem a favorecer um locus de controle externo e assumem que não podem fazer nada para mudar as suas circunstâncias. Tendem a entrar num registo de auto-comiseração e de pré-desistência face às adversidades;
  4. metacognição – as pessoas reconhecem que estão a viver emoções negativas e refletem sobre as emoções e as situações que as originam. Pensar sobre as emoções negativas, reconhecê-las, classificá-las e tentar aprender com as causas dessas emoções é aquilo que se chama um processo de aprendizagem auto-regulado, em que a consciência de nós, dos nossos sentimentos e das nossas circunstâncias nos leva a aprender a ser melhores em situações futuras, atribuindo uma polaridade positiva a uma situação que originou emoções negativas. No fundo, temos de viver as emoções negativas e processá-las, para construir algo de positivo com elas. E esta é uma das muitas formas de metacognição.

Este último estado pressupõe aquilo a que a Susan David chama de agilidade emocional, um processo que pode ser dividido em 4 passos:

  1. Reconhecer e descrever honestamente as emoções que estamos a sentir;
  2. Aceitar as nossas emoções, permitindo-nos vivenciá-las e processá-las, com tempo;
  3. Olhar para as nossas emoções de forma objetiva, assumindo que são mais experiências do que verdades absolutas e tentando entender as situações que as originam e seus nexos de causalidade. O mote deve ser perguntarmos a nós próprios “porque estou a sentir isto?”;
  4. Escolher ou calibrar os nossos valores, ou seja, os princípios que orientam e guiam a nossa conduta virtuosa.

Sobre estes tópicos recomendo a leitura de alguns textos meus mais antigos, como por exemplo o meu post “A inteligência emocional na gestão dos talentos” ou “Felicidade e Postura Vivencial“.

Votos de boas leituras e vamos todos praticar a nossa agilidade emocional! 🙂

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